Sejam bem Vindos ao meu Cantinho!

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"... E o enchi com o meu Espírito. Eu lhe dei inteligência, competência e habilidade para fazer todo tipo de trabalho artístico; para fazer desenhos e trabalhar em ouro, prata e bronze; lapidar e montar pedras preciosas; para entalhar madeira; e para fazer todo tipo de artesanato." Ex 31.3-5

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

As Regras do Método Sociológico na composição de Algumas Formas Primitivas de Classificação de Durkheim

As Regras do Método Sociológico na composição de Algumas Formas Primitivas de Classificação de Durkheim
Ângelo Fornazari Batista.

Introdução

Auguste Comte, filósofo e inaugurador da Sociologia, propõe em seu livro “Curso de Filosofia Positiva”, na primeira metade do século XIX, que a história da humanidade é constituída por três estágios. O estágio teológico, o metafísico e o positivo.
O estágio teológico tem como característica básica a explicação da natureza mediante seres sobrenaturais. Como no início dos tempos, a humanidade ainda não tinha ainda tempo suficiente para observar a natureza. Desta falta de observação e necessitando explicar os fenômenos a sua volta, o homem, entregue ao desespero e à acomodação, tendeu a se projetar na natureza. Isto é, todas as ocorrências naturais são fetiches: o Sol, a Lua, as marés, as montanhas ganham vida, estão, agora, animadas. Ainda no estágio teológico a transmissão do conhecimento é autoritária: o sacerdote é ponto de sapiência e reverência.
O estado metafísico é o qual Comte tem menos apreço: este estado permuta a explicação dos seres sobrenaturais por forças. O conhecimento gerado pelo espírito metafísico deve ser argumentado e não simplesmente baseado na fé.  Etapa de transição entre o estado teológico e o positivo, o estado em questão, ao mesmo tempo em que antecipa características deste, retém outras tantas daquele.
Por fim, o estado positivo é o estado final do desenvolvimento humano. Aqui não estamos mais preocupados com as explicações causais dos objetos naturais. O homem com espírito positivo é aquele que se prende às leis da natureza, ignorando suas causas imanentes. Por exemplo, a física aristotélica baseava seus conhecimentos no modo teológico e metafísico; ao passo que Newton, e posteriormente Einstein, explicam a queda dos corpos de maneira indubitavelmente positiva.
A segunda metade do século XIX é presenteada, na área científica, com a publicação do livro “As Origens das Espécies”, de Charles Darwin. Grosso modo, com essa publicação o autor pretende mostrar que as espécies, com o passar das gerações, evoluem por meio do que ele chama seleção natural. Ao contrário do que afirma o criacionismo, no evolucionismo o homem é originário de seres mais imperfeitos que ele; diretamente do macaco.
A Antropologia enquanto área específica de conhecimento nasce no final do século XIX e início do XX, encabeçada por estas duas teorias. Considerando o outro como essencialmente inferior, os assim chamados “antropólogos de gabinete” – dos quais Morgan, Frazer e Tylor são os expoentes –, viam sua sociedade européia como o estágio máximo do desenvolvimento humano, reduzindo à barbárie ou à selvageria aquelas que não suas próprias. Deste modo, para os evolucionistas, a seleção natural não se dá somente em relação às espécies animais – como tenciona Darwin –; o progresso é verificado também no âmbito social, como quer Comte.
Aceitando o modo de pensar positivista[1] recém inaugurado por Comte; Durkheim, entretanto, nega que a história seja teleológica: não há uma sociedade universal, tampouco valores morais absolutos socialmente ou humanamente imanentes. Em suma, não existe ou existiu uma sociedade, mas sim sociedades diversas, cada qual com suas especificidades. Ao contrário do que afirma Quintaneiro[2], para ele, nenhum fato corrobora aquilo que chamamos de progresso da humanidade. Pois
um povo que substitui outro não é simplesmente um prolongamento deste último com algumas características       novas; ele é outro, tem algumas propriedades a mais, outras a menos; constitui uma individualidade nova,   e todas essas individualidades distintas, sendo heterogêneas, não podem fundir numa mesma série contínua, nem, sobretudo, numa única série[3].

Mas isso não significa, é importante salientar, que traços sociais remotos não possam ser encontrados nas sociedades atuais, apesar de completamente desfigurados.
Em Algumas Formas Primitivas de Classificação, E. Durkheim – em parceria com seu sobrinho Marcel Mauss –, valendo-se de uma metodologia ímpar, procurará mostrar que não há uma linha divisória qualitativa entre os conhecimentos oriundos da Sociologia e da Antropologia, uma vez que ambas fazem parte de uma única ciência, a ciência social. Nesta monografia, longe de ver os primitivos ou arcaicos como inferiores em relação aos europeus de sua época, o autor em questão sugestiona que nosso modo de classificar as coisas do mundo tem como germe o das tribos australianas. Por mais que sejam vistas como aberrações, aos olhos do senso comum, estas duas diferentes formas classificatórias.

Desenvolvimento

Aristóteles, no século IV a.C, é consagrado por muitos como o inventor da Analítica: instrumento racional capaz de conferir a validade de um argumento. Para tanto, ele se valeu de conceitos como espécie e gênero. Estes ajudam a razão a circunscrever um objeto, classificando-o, organizando-o, indicando sua anterioridade ou posterioridade lógica em relação a outro objeto, etc. Assim, devido às noções de gênero e espécie, é possível inferir com exatidão que a espécie ser-humano está contida no gênero dos mamíferos; que o catolicismo é uma espécie contida no gênero religião, entre outros exemplos. Ora, se a Analítica – ou Lógica – nos mostra a capacidade de organizar, editar e recortar as coisas do mundo por meio de conceitos, Aristóteles nada mais fez do que verbalizar uma propriedade de nossa razão, mente, ou como se queira chamar. Ou seja, uma habilidade classificatória das coisas dispostas no mundo é imamente ao homem, ou melhor, a cada homem em particular. Durkheim e Mauss, em contrapartida, negarão esta epistemologia individual; entendendo a sociedade como anterior à formação do sujeito enquanto particularidade, estes autores colocarão um viés social na gênese de qualquer conhecimento, isto é, de qualquer classificação.
É fato observável, atualmente, que ao contrário das ciências naturais – nas quais o objeto de estudo deve-se valer do principio de não-contradição –, em outras áreas do conhecimento há uma hibridez e mesmo indiferenciação intrínseca do objeto: no mito de Narciso, a personagem, antes homem, transforma-se em flor; Eco, outrora ninfa, é agora uma pedra; a transubstanciação cristã e a santíssima trindade são vários outros exemplos.  Tais fatos demonstram que “não somente nossa noção atual de classificação tem uma história, mas esta mesma história supõe uma considerável pré-história[4].”
Esta “pré-história” remete, segundo nossos autores, principalmente às tribos australianas. Isso porque nas “sociedades menos evoluídas, (…) o próprio indivíduo perde sua personalidade. Entre ele e sua alma exterior, entre ele e seu totem, a indistinção é completa. Sua personalidade e a de seu fellow-animal constituem uma coisa só[5].” De fato, é importante lembrar, que os indivíduos estão coesos pelo que Durkheim chamou de solidariedade mecânica, uma vez que seus membros podem ser justapostos para as diferentes exigências frente à natureza. Este tipo de solidariedade é caracterizado pela diferenciação do trabalho apenas pelo gênero do ser humano, cabendo ao homem certas obrigações e à mulher outras; o amálgama social, aqui, é dado pelo totemismo – a religião ou moralidade.
Com efeito, como mencionado no parágrafo acima, a tribo em questão têm em comum o totemismo. Este, em linhas gerais, pode ser caracterizado como a adoração humana sobre animais ou vegetais principalmente, porém o culto pode se estender a todos os elementos naturais, como o sol, a lua, a chuva… Em suma, no totemismo, o homem adora a natureza, aquilo que o difere, mas que ao refleti-lo o entrelaça. Essa dicotomia entre tribo e/ou clã e natureza é condição sine qua non para qualquer tipo de classificação, pois para haver conhecimento é necessária uma separação, ainda que confusa, entre sujeito e objeto. Assim,
bem longe de o homem classificar espontaneamente e por uma espécie de necessidade natural, no início faltam à humanidade as condições mais indispensáveis da função classificadora. Aliás, basta analisar em si mesma a classificação para compreender que o homem não podia encontrar em si mesmo seus elementos essenciais.[6]
Os “elementos essenciais” de que falam nossos autores são, como frisamos, a natureza em geral, incluindo, aí, a sociedade de maneira mais específica. A natureza é vista segundo certa disposição dos homens em um determinado espaço físico, uma vez que toda tribo é dividida em duas fratrias, que por sua vez é cindida duas classes matrimoniais, abrangendo nestes espaços tantos outros clãs; sendo que os homens deste último têm todos por adoração o mesmo totem. As tribos australianas, por exemplo, são assim representadas: a fratria I corresponde, obviamente, além das duas classes matrimoniais o clã da avestruz, da serpente, da lagarta, etc.; na fratria II, além de outras duas classes matrimoniais, é encontrado o clã do canguru, do opossum, do corvo, entre outros. Durkheim e Mauss – percorrendo um longo caminho que vai desde as tribos australianas, passando pelos Aruntas, pelos Zuñis e pela China até chegar à Grécia antiga – exemplificam como deste modelo inicial de classificação o homem chegou à classificação conceitual tal como a concebemos. Com efeito, a adoração de um mesmo totem por parte dos indivíduos que o relacionam são as primeiras formas classificativas. Pois,
não é com vistas a regulamentar a própria conduta nem pra justificar sua prática que o australiano reparte o mundo entre os totens de sua tribo; mas, sendo que para ele a noção de totem é cardeal, sente a necessidade de situar com relação a esta todos os demais conhecimentos[7]
Sendo o totemismo os primórdios de toda religião, nele já está pressuposto uma ética[8]: proibições no consumo de determinadas comidas, regras de parentesco, inimigos declarados, etc. Por exemplo,
sabe-se que, em todos esses tipos de sociedades, a morte jamais é considerada como um acontecimento natural, devida à ações puramente físicas; é quase sempre atribuída à influência mágica de algum feiticeiro, e a determinação do culpável faz parte integrante dos ritos fúnebres. Ora, entre os Wakelbura, é a classificação das coisas por fratrias e por classes matrimoniais que fornece o meio de descobrir a classe à qual pertence o sujeito responsável, e talvez o próprio sujeito. Sobre o madeiramento em que repousa o corpo e em torno dele, os guerreiros aplainam cuidadosamente a terra de forma que a mais ligeira marca seja aí visível. No dia seguinte, examina-se atentamente o terreno sob o cadáver. Se um animal passou por ali, facilmente se lhe descobrem as pegadas; os negros deduzem daí a classe de pessoa que causou a morte de seu parente. Por exemplo, se se descobrem pegadas de um cão selvagem, saber-se-á que o assassino é um Malera ou um Banbei; pois é a esta fratria e a classe a que pertence o referido animal.[9]
Ora, se a ética totêmica impõe aos homens sua forma de classificação, esta só pode se basear, primeiramente, numa distinção entre aquilo que é profano ou sagrado, haja vista que toda religião se baseia neste fator diferenciativo. Além disso, distinguir o profano do sagrado pressupõe, naturalmente, o uso da sensibilidade, do trato com o mundo real e não abstrato. Assim, categorias racionais do entendimento são descartadas para qualquer classificação a priori[10].
Isso posto, podemos retomar a tese de Durkheim contra o evolucionismo:
As diferenças e as semelhanças que determinam a maneira pela qual se agrupam [as coisas] são mais afetivas que intelectuais. Eis como as coisas mudam, de certa forma, de natureza de acordo com as sociedades; é que elas afetam de maneira diferente os sentimentos dos grupos. Aquilo que aqui é concebido como perfeitamente homogêneo é representado alhures como essencialmente heterogêneo. Para nós, o espaço é formado de partes semelhantes entre si, substituíveis umas pelas outras. Vimos, no entanto, que para muitos povos, é profundamente diferenciado segundo as regiões. É que cada região tem seu valor afetivo próprio. Sob a influência de sentimentos diversos, ela é referida a um princípio religioso especial e, por conseguinte, é dotada de virtudes sui generis que a distinguem de qual outra. E é este valor emocional das noções que desempenha o papel preponderante na maneira pela qual as idéias se aproximam ou se separam. É ela que serve de caráter dominador na classificação[11].
Do decorrido, depreende-se que antes de buscar as raízes da religião tal como a concebemos, Durkheim e Mauss estão fazendo, concordando com Florestan Fernandes, uma sociologia do conhecimento. Buscando nas coisas o fundamento classificatório, os autores em questão rebatem a afirmação de Frazer. “Segundo ele [Frazer], os homens ter-se-iam dividido em clãs de acordo com uma classificação prévia das coisas; ora, muito ao contrário, eles classificaram as coisas porque estavam divididos em clãs[12].” Donde a proposição, logo no início da monografia, de nossos autores: “a classificação das coisas produz essa classificação dos homens.[13]

Conclusão

Em nosso paper procuramos enfatizar que a concepção histórica de Durkheim não tem começo, meio e fim necessários; muito ao contrário, a especificidade de cada sociedade com seu modo de classificação é dada pela relação dos homens com as coisas hic et nunc. Salientamos também que é a partir da noção de totem que os homens e as coisas são classificados. Pois, ao contrário de toda filosofia e psicologia que buscavam os instrumentos que possibilitavam o conhecimento no indivíduo isolado, promovendo um antropocentrismo; Durkheim e Mauss propõem, como eles próprios afirmam, um sociocentrismo. Isto é, os conceitos lógicos derivam da sociedade, melhor dizendo, de determinada sociedade ou da maior parte da sociedade, pois antes de gênero, espécie, quantidade, qualidade, causalidade, etc. as coisas foram separadas entre sagradas e profanas.
Entretanto, ao menos a nós, não fica clara qual a anterioridade lógica na relação entre totem e disposição dos membros no território, para a questão classificatória. É bem verdade que nossos autores salientam a primazia do primeiro em detrimento do segundo. Pois, como já acentuamos anteriormente, “a noção de totem é cardeal”. Aliás,
Quando se quer conhecer a forma como uma sociedade se divide politicamente, como essas divisões se compõem, a fusão mais ou menos completa que existe entre elas, não é por meio de uma inspeção material e por observações geográficas que se pode chegar a isso; pois estas divisões são morais, ainda que tenham alguma base na natureza física[14].
Pensamos, por outro lado, que essa “alguma” força que a natureza física imprime nas formas de classificação não é tão pequena assim. Diversos exemplos ao longo de Algumas formas primitivas de classificação são citados em que o sub-totem passa à categoria de totem devido à expansão ou mudança territorial dos homens. Ora, se o totemismo tivesse maior peso às formas de classificação do que a “natureza física”, os princípios de não-contradição que, invariavelmente, são violados em decorrência da elevação do sub-totem ao totem, deveriam ser sentidos, uma vez que esta constante subsunção tornaria as coisas, com o passar do tempo, tendo ao mesmo tempo caráter profano e sagrado. Enfim, se nossa interpretação é coerente, a localização geográfica é, antes do totemismo, determinante às formas de classificação.
Essa inversão lógico-temporal que estamos propondo, entretanto, não vai ao encontro com as conclusões de nossos autores; e sim a confirma, haja vista que dela decorre o que Durkheim chama de anomia.  De fato, foi a expansão territorial que, influenciando a religiosidade compreendida no totemismo, acabou por confundir o que é sagrado com o que é profano. Dessa insustentabilidade chega-se à falência classificatória inicial, dando lugar à classificação conceitual.

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